quarta-feira, 30 de março de 2011

"Para ouvir uma canção: 'Nomadismo e memória - algumas anotações sobre a canção 'Língua'"

A fala de ontem foi regida pelas colocações do professor Júlio Diniz. Optando por falar não exatamente do que trazia seu texto “Nomadismo e memória – algumas anotações sobre a canção ‘Língua’” publicado na coletânea de textos “Para ouvir uma canção”, o professor percorreu de Caetano Veloso, Chico Buarque, Nina Simone a Maria Gadú cantando “Ne me quit pas” e, eu acrescentaria, a nível de comentário, Edith Piaf para percebermos a distinção das três interpretações. Apesar de Maria Gadu ter um timbre de voz mais grave como o de Nina Simone, do que a agudez da voz de Piaf imprime em sua interpretação, em certa medida, o esvaziamento do ser sensível da canção em detrimento da espetacularização do romantismo-brega mediado pelo showbusiness. 
 Diniz não se embrenhou por seu artigo mas suas explanações trouxeram nomadismos ao espaço da conferência e de modo suplementar algumas posições foram formando-se no corpo de sua fala. Tomemos algumas delas como possibilidade de diálogo e pensamento:
 - “O grande barato da música brasileira é a canção em seu código musical e poético”.
- “Vinícius de Moraes e não apenas ele deveria ser visto como divisor de águas na canção brasileira. Vinícius trouxe outro lugar para a canção entre tantos outros”.
- “Compositor dos anos 20, 30, 40 traz um imaginário prosaico e do universo literário do século XIX.”
- “Canção não é mais só música e letra. É corpo, performance e uma série de outras coisas.”
- “Comparar  Elizeth Cardoso e João Gilberto, Peninha e Caetano leva-nos a perceber sofisticação e transformação em relação à composição stricto senso.”
- “A voz como assinatura é coautora da canção e possibilita pensar uma noção ampliada de parceria”.
- “Canção se norteia por dois momentos:
Chico Buarque com seu viés ideológico do engajamento atrelado à tradição da esquerda latinoamericana num período ainda de ditadura e depois dela, Guardando um procedimento conservador em relação à tradição. Assim como Victor Rara morto pelo governo Pinochet. Outro momento é Caetano Veloso com  Cucurrucucu Paloma”, guaranias e traz consigo a tradição hiperbólica e lírica assinando com a voz outra estampa – a canção como complexo multidiscurssivo.”
- “Acho impossível a canção terminar, assim como o livro e o cinema.”
- “Essa ideia de canção migra e não há emissão de valor”.
- “A tradição da canção brasileira não pode ser vista como engessamento da ideia de canção, ou seja, lugar do imaginário brasileiro, trilha sonora de nossas vidas.”
- “A música brasileira é nossa educação sentimental. Nossa formação.”
- “O Rio de Janeiro é multifacetado assim como a música. Variações de uma riqueza musical que nós temos”.
- “A ideia de memória é fundamental pra compreender a música popular brasileira que não pode ser vista como essência ou substância como o ato de guardar um chapéu do fulano de tal...”
- “ Memória é ativação, esquecimento senão não há avanço”.
- “ A Tropicália partiu pra cima da Bossa Nova: banquinho é o caralho”.
- “O novo nasce do cadáver do velho”.
- “Jorge Ben a partir dos anos 60 faz um samba tão revolucionário quanto João Gilberto na Bossa Nova, guardadas suas proporções.”
- “A memória tem que ter um lugar para ser preservado e o principal dela é sua ativação. Andreas Huyssen em “Seduzidos pela memória” trabalha as construções e edificações do holocausto como monumentalização da memória,fetichização, espetacularização da cultura, marketing...”
- Com 1 milhão gastos pelo ex-prefeito César Maia para homenagear  Tom na praia de Copacabana com Caetano, Gil, Gal, Paulinho da Viola, Milton criaríamos núcleos de estudos nas escolas para ativar a memória da música brasileira. A questão é que falamos de dinheiro público. Senão depois fica tudo pegando fogo como UFRJ ontem. Nós temos que cuidar da infraestrutura além de movimentar a memória também. Não é só colocar em um espaço que está preservada”.
- “O carioca sabe muito bem preservar sua memória com ações”.
Passado esse momento de provocações Diniz colocou duas versões da canção “Paratodos” de Chico Buarque. Uma das versões está no DVD “Chico e as cidades” e a outra no DVD “Meu caro amigo” que conta com a participação de  Gal Costa, Djavan, Dorival Caymmi - “buda nagô” como diria Gil – Tom Jobim e Daniela Mercury. Na primeira versão Júlio Diniz pontuou Chico Buarque como feitor de sua própria trajetória. E na segunda versão enfatizou o clima emocional e desafinação intensa. Além disso, situou “Paratodos” como homenagem à memória da música brasileira de forma curiosa. Primeiro Chico homenageia familiares - sua genealogia ligada aos antepassados. Depois amplia sua noção de família para os nomes que ele cita na letra da canção. “Evoè jovens à vista” faz um levantamento dos mortos da tradição da canção. A tradição do Chico é em cima de uma genealogia que não prima por uma origem. A identidade vai sendo traçada pela música popular brasileira.
No momento seguinte e anterior às perguntas Júlio Diniz encaminhou sua fala para o fim passando para a canção “Língua” de Caetano Veloso, onde há identidade poética da palavra falada e não na palavra cantada apesar de ser por ela. Na tensão Veloso e Buarque Diniz disse ser possível falar de memória por uma identidade nacional, viés identitário do “sou um artista brasileiro” como propõe Chico Buarque. Ou, via Caetano, “sejamos imperialistas”, “minha pátria é minha língua” - diferente de Fernando Pessoa para o qual a pátria é a língua portuguesa. Nesse sentido, constata uma questão concreta e fonética de nossa canção que está nas vogais e cita a canção “Meu Amanhã” de Lenine como exemplo desse estado singular dela, em que o lugar da língua é o da invenção dessa arte poliglota onde há memória de vozes em polifonia e não em identidade nacional - a canção que traz a memória ; autocanção. Desse modo, afirma Caetano como sendo não “Paratodos”, mas por todos e abre espaço para as perguntas.
- Qual a diferença da canção para a música pop?
 “Em termos de indústria cultural tudo está na clave de discussão do pop ou folclore. O mercado é perverso e como lidar com ele? A indústria fonográfica está falida pelos preços e novos recursos tecnológicos. O conceito de pop substitui em tensão a ideia do adjetivo popular. O grande desafio do nosso tempo é como lidar com novos conceitos. Talvez as estratégias de combate dentro da rede, em rede, possam ser um caminho - sozinho ninguém chega a lugar nenhum. É um problema falar do pop no sentido do nacional popular hoje. Pop tem mais a ver com o volume de aceitação e mercado. E isso me leva a dizer que estou fora de responder sobre erudito e popular ou se letra de música é poesia.”
- É o Brasil a grande força das vogais?
“As vogais trazem o ritmo. A oralidade é um lugar fundamental para entender o Brasil enquanto povo maior multifacetado chamado Brasil, onde os povos inventam corpos, balanços e jeitos de permanência. Para isso seria preciso entender a diferença do regime modal, que não tem nada a ver com música dos primitivos, e o tonal”.
- Você disse que não precisamos nos preocupar em tombar o samba, fale um pouco sobre as modificações dele?
“O samba que acelera vira marcha e o que diminui vira seresta. O samba enredo é a trilha sonora de um espetáculo performático. Essa tradição continua de outras formas e de outras maneiras que não no morro ou indústria cultural do turismo na Lapa”.
- Como pensar no ritmo trazido com vogais na canção popular brasileira, senão, em certa medida, pela memória de uma ancestralidade africana do dançar, batucar e cantar?
“Não é só a África que dança, batuca e canta. A África não é apenas ela o lugar de um genoma da ancestralidade. Não há mais a moral do escravo - a tese de Mário de Andrade da dinamogenia e que Tinhorão continua. Para pensar essa questão sugiro ler ‘Samba o dono do corpo’; ‘Mistério do Samba’ e ‘Feitiço Recente.’”
- Apontamentos finais sobre o novo Museu da Imagem e do Som:
“Acesso à informação precisa ser democratizado com a digitalização de tudo. Um dos maiores problemas que mata a memória cultural do nosso país é a ganância, como exemplo há a família Gilberto, e falta de interesse público. A gente faz algumas coisas para artista e não para o público”.

                   No mais, sem mais e até mais ver com os escritos sobre "O Rio de Janeiro em letra e música" por Marcelo Moutinho - última fala que assistirei no "Para ouvir uma canção: ciclo de conferências sobre a canção popular brasileira".

4 comentários:

  1. Bacana, Fabrícia!
    Atenção, turma: não podemos passar por essa oficina sem ouvir nem ler Vinícius de Moraes. Isso merece um seminário. Quem se habilita?

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  2. Merece mesmo... Acho que o Pedro podia falar dele... Que tal?

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  3. Oi Fabrícia, gostei muito de ler as suas postagens sobre o ciclo de palestras. Obrigado por manter-nos informados sobre os temas debatidos, as falas dos convidados enfim, obrigado.

    Consegui ouvir a voz do Júlio nos seus fotogramas. Muita coisa a ser debatida, "promessa de felicidade". Há pelo menos dez dissertações na fala do Júlio, aliás, interessantíssima.
    Sobre o Vinícius, acho que por hora é suficiente a minha contribuição com a leitura de "A rã", e portanto, espero e torço para que algum colega aceite o desafio de apresentar esse seminário.

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